sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Com fim do debate científico, luta contra mudança climática ganha ar dramático

Com o fim do governo George W. Bush, sai de cena o último dos "questionadores" do aquecimento global. E os países desenvolvidos já parecem adotar um tom uníssono, no sentido de que a discussão sobre a mudança climática já atingiu uma segunda fase. Em vez de discutir se isso realmente está acontecendo, e com que magnitude, o foco das discussões passa a ser - o que vamos fazer para evitar que a coisa fique realmente muito feia.

Desde o último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudança Climática, da ONU), no ano passado, um novo e inabalável consenso surgiu acerca do aquecimento global: um aumento de até dois graus Celsius na média das temperaturas em escala mundial deve acontecer até o fim do século, não importando o que façamos agora para impedi-lo.

Ocorre que o carbono que temos emitido nos últimos 50 anos na atmosfera tende a ficar um século por lá antes de ser reabsorvido. Então, mesmo que a humanidade interrompa por inteiro suas emissões agora, ainda pagaremos os efeitos do que estávamos colocando no ar até ontem - um preço que virá em prestações a serem pagas nos próximos cem anos.

A batalha agora, no que diz respeito à contenção do aquecimento global, se centra em evitar a chamada "mudança climática perigosa". Os cientistas definem atualmente essa fronteira num aumento de temperatura global acima de 2 graus Celsius. Para eles, é o que será preciso para levar a um derretimento inevitável do gelo preso no solo da Groenlândia. A caminho do mar, essa montanha de água faria subir o nível dos oceanos em vários metros ao longo dos próximos milhares de anos. Mas em menos tempo que isso a mudança já seria mais perceptível, a ponto de causar estragos em muitos países.

Um dos mais preocupados, hoje, entre as nações industrializadas é o Reino Unido. Não por acaso, é um país-ilha, que tem somente o mar como referência para definir suas fronteiras.

Contenção

Para evitar a tal mudança climática perigosa, será preciso reduzir drasticamente as emissões de carbono nos próximos 30 anos. E, na verdade, a ciência sugere que essa redução terá de ser muito aguda nos próximos dez.

Por conta desse fato, a Europa está tentando costurar um acordo continental, estabelecendo metas para emissões e forçando a mudança da matriz energética - de fontes sujas, como carvão e petróleo, para fontes limpas, como usinas eólicas, solares e, gostem ou não os ambientalistas, nucleares.

O acordo europeu estabelece metas de redução de 20% nas emissões de carbono até 2020, com relação aos níveis de 1990. Para o ano 2050, a meta deve ser mais agressiva, embora ainda não esteja definida. Há quem fale em 50%, há quem diga 60% e há até os proponentes dos radicais 80% de cortes.

Mas as propostas encontram resistência mesmo em certos países europeus, como a Polônia, que depende fortemente de carvão em sua atual matriz energética e talvez não possa se dar ao luxo, economicamente, de promover uma mudança tão radical.

Com medo de empacar nas negociações, alguns países estão tentando assumir uma postura de liderança, estabelecendo metas nacionais independentemente do que seus vizinhos pretendam fazer.

No plano das ações, a nação européia que mais se destaca é a Alemanha. Esforços intensos estão sendo feitos naquele país para implementar planos ambiciosos de energia eólica, que agora já servem de modelo para outros países. A essa altura, os alemães parecem estar à frente dos demais nessa transição para uma nova economia com menos carbono e mais energia limpa e renovável.

No plano das políticas, França e Reino Unido aparecem com proeminência. Sob a gestão do presidente Nicolas Sarkozy, o governo francês foi o primeiro a elaborar "orçamentos de carbono" -- documentos que indicam quanto o país pode emitir, para cumprir as metas globais de redução de carbono na atmosfera.

Já o Parlamento do Reino Unido, no início desta semana, aprovou a Lei de Mudança Climática - a primeira legislação nacional voltada para o aquecimento global no mundo todo. Ela estabelece metas agressivas para redução das emissões (26% até 2020, 80% até 2050) e cria mudanças significativas na estrutura do governo para garantir que os objetivos sejam perseguidos com vigor.

Há cerca de três meses, o governo britânico unificou os ministérios da Energia e do Meio Ambiente num único Ministério da Energia e Mudança Climática. A idéia é unificar sob um único comandante decisões que poderiam parecer antagônicas em dois ministérios diferentes: de um lado, satisfazer às necessidades energéticas do país; de outro, cumprir os objetivos necessários à preservação ambiental. Agora, a mesma pessoa terá de zelar pelas duas coisas.

Além disso, a Lei de Mudança Climática estabelece a criação de um Comitê de Mudança Climática, órgão independente que operaria de forma semelhante ao Copom, responsável por estabelecer as taxas de juros da economia. No caso do aquecimento global, o dito CCC seria responsável por aconselhar e cobrar o governo no cumprimento das metas estabelecidas por orçamentos de carbono nacionais, feitos para períodos de cinco anos.

Com suas três maiores economias na busca de uma solução para a mudança climática, a Europa aparece em posição de destaque na questão. Mas de nada adianta os europeus fazerem a parte deles, se o mundo inteiro não caminhar junto.

Uma nova esperança

A eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos é vista com grande expectativa pela comunidade internacional. A expectativa é a de que tenha fim a relutância americana em debater metas para conter a mudança climática. Nos últimos oito anos, as delegações americanas que compareceram às reuniões da ONU sobre o assunto só fizeram por tentar sabotar o Protocolo de Kyoto - primeiro esforço internacional para lidar com a mudança climática, que estabeleceu metas de reduções até 2012.

Obama já deu todos os sinais de que os EUA estão de volta ao mesmo barco, mas suas metas nem de perto se assemelham às européias. O presidente eleito anunciou que os americanos se comprometerão a reduzir suas emissões até os níveis de 1998 em 2020, para depois cortar em 80% até 2050. Para o segundo maior emissor de carbono do mundo (perdeu o primeiro posto recentemente para a China), talvez seja muito pouco, sobretudo na meta de 2020. O resto do mundo, embarcado em Kyoto, trabalha com as referências de 1990, enquanto os americanos querem emplacar uma referência mais inchada, de oito anos depois.

Mas só o fato de que os EUA falam agora em metas já é um alívio, e os governos europeus esperam que isso se aprofunde no futuro próximo, deixando de ser apenas palavras e sinais e passando a ser ações concretas e focadas no alvo.

Só com a lição de casa pelo menos encaminhada, as nações desenvolvidas conseguirão empurrar uma proposta muito mais impopular: convencer os países em desenvolvimento a cooperar.

Os pobres também têm de pagar

Brasil, China e Índia são países que, a despeito de seus problemas sociais profundos, não podem ser negligenciados no que diz respeito às emissões de carbono.

Enquanto o primeiro promove a maior parte de suas emissões pelo desmatamento amazônico, os outros dois têm economias aceleradas e superpopulações que exigem cada vez mais recursos energéticos. Não é à toa que, depois de passar uma década com a economia crescendo a 10% ao ano, a China hoje já é o país que mais emite carbono na atmosfera, superando até mesmo os americanos.

Claro que, quando contabilizamos as emissões "per capita", o chinês médio emite muito menos que o americano. Mas o planeta não leva em conta esses números para ter seu clima transformado. E isso significa que os países pobres também terão de fazer sua parte, muito embora eles tenham em pouco contribuído para o problema atual e ainda possuam uma demanda energética imensa para promover seu desenvolvimento.

E ninguém pense que vai receber um afago na cabeça só porque é país em desenvolvimento.

"De fato, o desflorestamento é um problema sério para o Brasil", diz Joan Ruddock, vice-ministra da Energia e da Mudança Climática do Reindo Unido. "Mas ninguém pode pensar que a contribuição do Brasil é só resolver o problema do desflorestamento. Mais esforços terão de ser feitos para reduzir as emissões, e cada país terá de lidar com os seus problemas."

Mas nem todos os países em desenvolvimento vão reagir a isso com entusiasmo. Até mesmo a China - que já trabalha forte em tecnologias para reduzir as emissões - reluta em debater metas concretas e limites para suas emissões.

Um acordo global para o pós-Kyoto deve sair - ou naufragar - até o final do ano que vem, em reunião da ONU em Copenhagen, na Dinamarca. Noves fora a diplomacia, cada país precisa trabalhar internamente suas metas para migrar para a economia "descarbonizada" do futuro, sob risco de se ver cada vez mais isolado no cenário internacional.

Embora ninguém fale em embargos econômicos no momento (até para não assustar), está claro que ferramentas como impostos e taxas começam a surgir no jargão do combate ao aquecimento global e serão usadas se a necessidade aparecer. Mudar é preciso.

O que já vem por aí

De resto, os países desenvolvidos se preparam para as mudanças inevitáveis que o clima irá proporcionar nas próximas décadas.

No campo da ciência, os grandes esforços começam a se voltar para análises locais das mudanças climáticas. O Hadley Centre, escritório de meteorologia do Reino Unido, está desenvolvendo um trabalho forte no setor, com o intuito de antever onde a infra-estrutura britânica terá de ser reforçada para proteger o país da mudança climática.

Londres já tem um plano próprio - em desenvolvimento pela prefeitura da capital britânica - para lidar com as trasnformações do clima e suas conseqüências. Outras cidades devem fazer o mesmo, em breve.

E esse conhecimento começa a ser exportado para outras nações - inclusive o Brasil. Numa parceria entre Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e Hadley Centre, pesquisadores brasileiros e britânicos estão desenvolvendo modelos de impactos locais da mudança climática para o território brasileiro.

Os resultados que advirão dessas pesquisas devem servir de guia para que os formadores de políticas possam agir no sentido de minimizar os impactos da mudança climática.

É o que resta, depois que tanto tempo foi perdido em cortinas de fumaça e contra-argumentos aos cientistas que alertavam sobre as mudanças que a ação humana estava causando em seu próprio planeta. A essa altura do campeonato, o aquecimento global está aí. Já acontece e veio para ficar. E pode ficar ainda pior, se não agirmos, globalmente e rápido.

Fonte: Salvador Nogueira / G1