segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Economistas ainda tentam medir a felicidade

O economista José Eli da Veiga, especialista em desenvolvimento sustentável, explica por que os índices atuais, como o PIB e IDH, deixam muito a desejar

MARCOS CORONATO

Como o processo de desenvolvimento pode se tornar sustentável, se ainda não sabemos direito como medir a qualidade de vida, nem o grau de cuidado com a natureza, nem o próprio crescimento econômico? Esse tipo de preocupação está no cerne das pesquisas do economista José Eli da Veiga, um dos principais pensadores brasileiros no campo do desenvolvimento sustentável, participante da formulação do programa de governo da candidata a presidente Marina Silva (PV) e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP. Eli da Veiga lançou em novembro seu livro mais recente, “Sustentabilidade – A legitimação de um novo valor”, pela Editora Senac. No livro, ele afirma não se preocupar com a falta de uma definição muito precisa para “sustentabilidade”. O economista argumenta que outro valor fundamental para a humanidade, a justiça, também desafia definição muito precisa. Mesmo assim, afirma ele, é razoavelmente fácil identificar o que é injustiça, assim como o que é uma prática insustentável. A seguir, alguns trechos de duas conversas de Eli da Veiga com ÉPOCA.

A ECONOMIA DA FELICIDADE
Houve a discussão no Butão, que é uma sociedade bastante atrasada em termos de capitalismo e desenvolvimento. Eles perguntaram por que aceitar essa convenção do Ocidente, que o relógio que mede a sociedade é o PIB, e concluíram que o que interessa é a felicidade. Até aí é uma crítica ótima. Eles substituíram o PIB pelo FIB, que também é uma medida bruta. Mas eles medem misturando tudo, os indicadores objetivos com indicadores subjetivos, que dependem de questionários aplicados à população sobre saúde, educação. Achei uma solução completamente equivocada, que não vai levar a nada.
Há 10 anos discutíamos uma coisa chamada Paradoxo de Easterlin. Ele foi o primeiro a mostrar que, nos Estados Unidos, por exemplo, o PIB não parou de aumentar, mas a felicidade das pessoas, a satisfação das pessoas com a vida, acompanhou o PIB até os anos 60. Depois, virou uma tesoura: foi cada um para um lado. Até um certo patamar de desempenho econômico, mais grana significa mais felicidade. A partir desse patamar, isso não acontece mais. Mais grana não se reverte em mais felicidade. Hoje há uma base de dados e metodologia para essas medidas.

COMO MEDIR A QUALIDADE DE VIDA
Existe um índice que se impôs desde os anos 90, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que vem também sofrendo críticas. Uma delas é que uma dimensão do IDH é o próprio PIB per capita. É um índice que dorme com o inimigo: ele foi criado para evitar que o PIB fosse usado como medida de qualidade de vida, mas ele próprio inclui o PIB. Além disso, ele mede a saúde só pela expectativa de vida e a educação só pelo nível de matrículas (média de anos de estudo). Sempre foi considerado uma medição muito tosca. Mas tem uma lógica: se você quer
que 200 e tantos países no mundo façam esse cálculo, não adianta ser uma coisa muito complicada, senão metade dos países nunca vai calcular.
O que há de alternativo a isso é o Relatório Stiglitz, encomendado pelo governo francês. Para medir qualidade de vida, o relatório propõe um indicador complexo, com oito dimensões: educação, saúde, segurança econômica, segurança propriamente dita e assim por diante. E recomenda também o uso de indicadores subjetivos (obtidos por meio de questionários e pesquisas feitas com a população, em vez de contabilidade). Existem coisas consistentes nessa área de pesquisa chamada economia da felicidade.
Nós vivemos no Brasil um momento razoável de estabilidade econômica, um crescimento que não precisa ser muito maior que o atual, do meu ponto de vista, e pelo menos algumas migalhas estão indo para uma melhora geral da qualidade de vida. Isso começou de forma meio hesitante no governo Fernando Henrique Cardoso, depois ganhou força no meio do governo Lula. No caso da Indonésia, começou a acontecer coisa desse tipo, mas com uma exploração predatória de um recurso natural. Não acho que seja o caso do Brasil, temos um caso com mais nuances. (Mas) quem acha que sustentabilidade rima com qualidade de vida está por fora da história. É o contrário.

O PIB AINDA SERVE PARA MEDIR O CRESCIMENTO ECONÔMICO?
Com a contabilidade nacional posso calcular várias coisas – o PIB, o PNB ou uma coisa chamada Produto Interno Líquido. O que é bruto não tem a amortização – a desvalorização e o gasto de reposição de um carro, de uma máquina. Não se cogitava antes fazer amortização do capital natural. Hoje sabemos que, seu eu exploro uma mina, não posso considerar só o que eu faturo. Alguma coisa tem de ir para a outra coluna da contabilidade, porque eu estou dilapidando aquele patrimônio.
O PIB já era ruim por outros motivos, mesmo sem pensarmos em sustentabilidade.
O (economista Eduardo) Giannetti foi aplaudido no lançamento do meu livro por lembrar que o trabalho doméstico não é remunerado (Giannetti afirmou que educar uma criança é um trabalho extremamente nobre e não entra no PIB). Cuidar de um idoso, por exemplo, não entra no PIB. Se não houver troca com o mercado, não entra no PIB.
Há críticos que dizem que o PIB não serve para medir qualidade de vida. Mas os contabilistas respondem que o PIB não é mesmo para esse fim, ele é uma medida econômica da produção. Essa é a crítica boba. Mas há outra crítica, de que o PIB não é bom nem como indicador de produção. Li num documento do Wikileaks, de um diplomata que estava na China, conversando com um governador de província. O governador dizia que o PIB era bom para constar, mas que ele não levava em conta. Ele dizia “aqui, peço para saber qual foi o aumento do consumo de eletricidade, da carga dos trens, isso aí mostra muito mais como é o desempenho da economia”. A Irlanda é outro exemplo – lá, o PIB cresceu, mas a renda das famílias não.
O (presidente da França, Nicolas) Sarkozy teve a sacada e convidou o (Nobel de Economia Joseph) Stiglitz e o (Nobel de Economia) Amartya Sen para montar uma equipe. Eles passaram um ano trabalhando nisso. Uma das primeiras conclusões a que eles chegaram: nós precisamos de três medidas diferentes. Uma do desempenho econômico, uma da qualidade de vida, outra da sustentabilidade. São três coisas diferentes, que não devem ser misturadas. Ele
propõe que o PIB seja substituído desempenho econômico seja medido pela renda ajustada ou renda líquida das famílias. É uma medida que deduz as despesas obrigatórias da família, como impostos. Eles querem calcular quanto sobra, a renda disponível para a família usar no consumo da maneira que ela decidir – comprando banana, automóvel, colocando na poupança, em educação melhor para os filhos.
Não é um cálculo simples. Se o IBGE resolver fazer isso, vai precisar de um certo tempo. A proposta, além de logicamente interessante, recebeu uma espécie de confirmação com Irlanda. O PIB disparou e a renda líquida das famílias nunca mudou. Havia uma disparidade. O PIB era um indicador ilusório e levou o mercado financeiro a grandes equívocos sobre a Irlanda.

COMO CHEGAR A UM PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Não vejo tanto problema assim no fenômeno do greenwashing (a tentativa de empresas de “lavar” a imagem usando o discurso de sustentabilidade social e ambiental). Quando a empresa começa a usar o termo sustentabilidade, mesmo de maneira oportunística, abre a possibilidade de os clientes, fornecedores e parceiros irem em cima dela com cobranças. Existem muitos casos de companhias que começaram a usar o apelo sustentável sem uma política muito séria e depois tiveram de definir essa política.
Não tem regra do que vem antes e o que vem depois. Não tenho resposta quando as pessoas perguntam “você não acha que isso exige principalmente uma mudança de comportamento?”. Inovação tecnológica é absolutamente necessária. Mas não posso afirmar que primeiro precisamos descobrir isso para depois ter mudança de comportamento, ou que precisamos primeiro de mudança de comportamento para depois ter a inovação tecnológica. Ou que primeiro precisaremos mudar nossos valores. Cada exemplo na nossa história mostra uma combinação diferente. Eu uso o exemplo da escravidão porque o Eduardo Giannetti fez uma brilhante intervenção (no lançamento do livro de Eli da Veiga, em novembro), mas que era ultrapessimista, reclamando que estava tudo errado. Deu uma sensação de que talvez a humanidade não seja capaz de resolver o problema do aquecimento global. Por isso, lembrei que somos capazes de resolver problemas. Um caso típico foi a escravidão, que existiu durante milênios, em praticamente todas as sociedades, e no período de um século foi praticamente extinta.