segunda-feira, 21 de março de 2011

A proposta de mudança do Código Florestal, em uma análise sucinta


Eleazar Volpato
Professor do Curso de Engenharia Florestal da unb

  Há uma razão fundamental para a proteção das florestas. Esta motivação, razão ou comportamento tem se alterado no tempo, de lugar para lugar e de indivíduo ou grupo social para grupo social à medida que a própria civilização evolui e os conhecimentos e necessidades se alteram. Civilizações se desenvolveram com a abundância dos recursos florestais e sucumbiram ou foram dominados, quando a fertilidade dos solos e a madeira para a forja das armas e a construção das embarcações declinaram e suas bases foram corroídas. A conhecida frase, “A floresta precede as civilizações e o deserto as segue”, reflete bem isto.

  Na Europa, as áreas florestais que mantinham e serviam à regeneração dos solos para a agricultura e o fornecimento de madeira para os mais variados fins, desde o aquecimento e as forjas até à frota armada, deram o suporte àquela civilização que entra em crise diante do seu próprio desenvolvimento.  O aumento da população e do consumo de alimentos pressiona as florestas requerendo suas áreas para a agricultura ao mesmo tempo que cresce as necessidades de madeira. Em sua parte Central esta crise atingiu seu auge no século dezoito. O medo da catástrofe aguçou a ciência e os inventores na busca de solução. O gado passa para os currais e a agricultura se “moderniza”, liberando as florestas para a sua maior tarefa à época, o fornecimento de madeira. O Carvão Mineral passa a substituir parte do consumo de madeira. O transporte se desenvolve e permite o trânsito de madeira e carvão a longa distância. O Manejo Sustentado das florestas se implanta e se consolida, aliviando aquela civilização da temida catástrofe que mantêm hoje (2005) 44,3 % do seu território com cobertura florestal, com uma taxa de crescimento anual em torno de 0,07, segundo dados da FAO.

  Aqui no Brasil, o processo de ocupação territorial e de substituição das florestas pela agricultura, iniciado logo após o seu descobrimento e com a pecuária mais recentemente, continua. Registra-se em diferentes ocasiões preocupações quanto a este processo motivadas por distintas razões. A reserva das chamadas “madeira-de-lei” que visava abastecer o Reino na reconstrução de Lisboa e a proibição de corte e o monopólio do Pau-brasil são exemplos de medidas que visavam proteger as florestas pelo seu valor econômico. A recuperação das matas da Tijuca-RJ, ocorrida em meados do século dezenoves, tem por outro lado motivação ecológica. As florestas com o Pinheiro do Paraná também tiveram grande significado econômico, porém, não foram administradas de forma sustentada, serviram para capitalizar outras atividades, como a agricultura e a pecuária. Isto ainda vem ocorrendo nas demais áreas florestais. O longo ciclo da economia ou produção primária florestal sempre desestimulou a regeneração ou manejo florestal sustentado, o que torna necessário medidas governamentais para estimular e fortalecer o equilíbrio ecológico.

Se na Europa a disputa de área foi travada e o equilíbrio foi obtido pelo então significado econômico e estratégico da madeira, aqui esta não teve e não tem hoje a mesma expressão, sendo as necessidades locais supridas ora com o produto vindo de outras regiões, ora e principalmente hoje substituída por outros materiais ( ferro/aço, cimento, plástico) que impactam e fazem os serviços ambientais às reversas das florestas. Aqui as questões ecológicas e ambientais é que deverão ser as forças para estabelecer o esperado equilíbrio dos interesses em suprimir e manter as florestas.

As preocupações dominantes na Europa nos foram repassadas por Portugal, na colônia e menos no império, porém levantadas com a autonomia crescente.
  Chega-se ao início da República praticamente sem legislação que pudesse proteger as nossas matas das frentes de ocupação que as suprimiam sistematicamente. A falta de clareza da Constituição de 1891, quanto à competência do Poder Central legislar sobre a matéria florestas, levou os inúmeros reclamos dos intelectuais e do próprio Poder Executivo da Republica a só poderem ser atendidos com a competência da União esclarecida na Carta de 1934 e com a edição do Primeiro Código Florestal no mesmo ano.  Este Código basicamente tornava obrigatório que os grandes usuários mantivessem florestas para prevenir da sua própria derrota e evitar a pressão sobre as demais áreas florestais, e que os proprietários rurais retivesse no mínimo uma quarta parte de suas propriedades com Matas. Ao par dessas medidas orientadas ao privado previa que o Poder público estabelecesse Parques Nacionais e outras unidades a gerem providas pelo ESTADO (União, estados e municípios).  O manto florestal assim formado e constituído por florestas classificada como Protetora, Modelo, Remanescente e de Rendimento deveriam prevenir os mais variados interesses e disciplinar o avanço da agricultura e da pecuária.  Tratava o mesmo ainda da Polícia e administração florestal, das Infrações e dos Processos das Infrações, da exploração e de inúmeros outros assuntos que foram aperfeiçoados no Código florestal de 1965 e se constituíam nas ferramentas para a ação executiva.

Para avaliar as alterações propostas vamos nos referir inicialmente ao modelo concebido pela atual legislação e por fim abordar algumas entre as tantas questões.

Assim, o código florestal tal como foi concebido em 1934 e aperfeiçoado em 1965, representa antes de tudo uma disciplina ao processo de ocupação territorial, reclamada pela sociedade desde o início do século XX, visto que a agricultura e a pecuária nada poupavam.

Para esta disciplina era necessário que o Estado resguardasse áreas sob seu domínio e estabelecesse restrições aos privados, no uso da terra e da própria floresta.

 Aos grandes usuários de produtos florestais, para prevenir a sustentação da produção e evitar pressão às florestas das Propriedades Rurais, foi exigido tivessem florestas para atender seu empreendimento.

Às propriedades rurais, objetivando manter um mínimo de cobertura silvestre, uma distribuição regular e o resguardo de áreas com grande sensibilidade ecológica, foi requerido a manutenção de 25%, em 1934, e 50% a partir de 1965, da área das novas propriedades, com cobertura florestal localizada a critério da autoridade competente.

O conjugado das áreas florestais públicas - federais, estaduais e municipais, antes inseridas na Lei florestal maior e hoje deslocada para Lei própria -  SNUC, com as privadas, das grandes indústrias e das propriedades rurais, permite construir um manto florestal, com a dimensão, com a qualidade e com o arranjo espacial adequado, conciliando os interesses econômico, ecológicos e sociais, ordenando assim, também o uso da terra no âmbito dos imóveis rurais.

Como referência para a dimensão desta área ou manto florestal desejado, para atender os diversos interesses, temos, por exemplo, na Europa 44%, no Japão, 2ª economia do mundo, 68%, Finlândia e Suécia, valores ainda maiores, Áustria 46%,dados da FAO, dos seus territórios cobertos por floresta. Isto nos permitiria propor, considerando a nossa situação tropical e o princípio da precaução, a manter, no mínimo, de 50% a 60% do nosso território com floresta - a Espanha, por exemplo, tem em seu programa de recuperação, como objetivo nacional a atingir 50%, em 50 anos, iniciado da década de 1980. Este quantitativo deve ser aqui alcançado com as florestas públicas e privadas. Hoje, segundo a mesma fonte, o Brasil conta com 57% de cobertura florestal, com grandes discrepâncias regionais que registram o processo de ocupação pela agropecuária.

A qualidade ou tipo de intervenção admissível deste manto florestal está definido nos conceitos e definições das APP, Reserva Legal e nas Unidades de Conservação definidas no SNUC. Isto permitiria conciliar os interesses do uso, da proteção e conservação das áreas silvestres/florestais com os interesses do uso de área e do solo.

Referente ao arranjo espacial, uma distribuição regular no território e uma conexão entre maciços florestais é desejável e necessária para formar os corredores ecológicos. Isto é possibilitado com a “reserva legal” em cada propriedade e com as áreas de preservação permanente – APP e importante para o maximizar o exercício de suas funções e com a participação das unidades públicas, que nos países desenvolvidos, independente da ideologia, atinge um grande percentual.

Devemos considerar para esta avaliação aspectos relevantes tais como os abaixo colocados e outros que pelo espaço não pode ser aqui apresentado.

1-A competência e responsabilidade que teve a União em classificar os diversos tipos de florestas e definir as florestas protetoras no período de 1934 a 1965, assumida nos termos do Art.18 do Código de 1965, e no período de 1967 a 1988, quando era competência privativa da União legislar sobre a matéria floresta, é um aspecto.

2-As funções das florestas no plano econômico - bens, capital, trabalho, renda,reserva e emprego; no plano da proteção ecológica - proteção ao clima (temperatura do ar e nível de precipitação),proteção ao Ar ( relação CO2 x O2 e filtro partículas sólidas), proteção aos ruídos e a radiação solar, proteção a Água( regularidade ,quantidade e qualidade), proteção ao solo(erosão hídrica, eólica, assoreamento,avalanche) proteção aos ventos, a paisagem, a cultura e a biodiversidade da flora e da fauna, e por fins no plano da saúde espiritual, como áreas de recreação e lazer, importância crescente com o grau de industrialização e com o aumento do padrão de vida.

3-Por fim, envolvendo todas funções, a função de área ou espaço territorial. È um outro aspecto. Cada uma destas funções são relevantes para atividades econômicas importante, ora de forma antagônicas, ora em simbiose. A agricultura e pecuária, tal qual hoje praticadas, são exemplos de atividades que se contrapõem na disputa por espaço territorial e relutam em perceber os benefícios de ter as florestas intermediadas em suas áreas.

4-No caso da presente proposta assistimos  a disputa pelo espaço ocupado pelas florestas por praticamente um único interesse, o da agropecuária, onde praticamente todas as demais funções das florestas e interesses dos outros setores da sociedade, estão sendo subordinados. Nem mesmo os interesses da própria agricultura e pecuária, sustentável e sadia, estão sendo considerados. Quando se retira a obrigatoriedade, por exemplo, de se manter cobertura florestal em todas as propriedades e se permite inclusive compensar esta em outras áreas ou regiões, se abre caminho para a formação de grandes vazios e áreas expostas ao vento que reduz a produção, tira-se a chance de manter os predadores naturais para o controle biológico das pragas, formando paisagens desoladoras, retirando e prejudicando o trabalho rural alternado com o do manejo das áreas florestais com a agricultura/pecuária, entre tantos outros danos a própria propriedade rural.

Entre as diversas questões da proposta de mudança do Código florestal que, aliás, já foi desfigurado pelas sucessivas alterações, podemos citar algumas a seguir:

a-      Consolida a possibilidade introduzida pela Medida Provisória de 2002, não votada no congresso, de compensar a Reserva legal em outra propriedade dificultando o controle e transparência, resultando na construção de grandes vazios de florestas quando  combinado com a desobrigação de recuperar as áreas com ocupação consolidada, com a desoneração das propriedades com até quatro módulos de manter reserva legal e com a incidência desta só sobre a parcela excedente aos módulos;

b-      Transferência aos estados da responsabilidade de recuperar (PRA) áreas antes de responsabilidade da União (Art. 18, atual Código), sem  manifestação de interesse  e sem abrir fontes de receitas e suprimindo o compromisso do crédito a taxa de juro e prazo compatível com a atividade florestal, aliás nunca disponibilizado;

c-      Assegura-se o retorno da agricultura e da pecuária às áreas florestais plantadas ou secundárias nas APP e Reserva Legal, visto que na definição de Área Rural Consolidada inclui as áreas em regime de pousio de até 10 anos, ficando assegurado o uso dessas áreas pela agropecuária;
d-      A desobrigação de recompor e mesmo a dispensa da reserva legal nas novas propriedades de até quatro módulo, contando essa só sobre a parcela excedente a 04 módulos rurais. Além do vazio, da quebra na conexão dos maciços, inviabiliza os estados com índice de cobertura florestal baixo, como Paraná, Rio grande do Sul e São Paulo, por exemplo, de elevarem sua coberturas florestais;

e-      A consolidação em lei de um inútil controle da circulação da madeira. A floresta é presa ao solo. É lá na propriedade rural que devemos verificá-la - O controle da circulação da madeira hoje só serve para produzir corrupção (Foi criado em uma situação específica pelo Instituto do Pinho na década de quarenta para o controle da produção e dos preços). Os estados é que deveriam criar seus próprios sistemas de controle de proteção às florestas. Cada órgão ou instituição provedora de áreas silvestre é que deve ser responsabilizada pela guarda no seu perímetro.

f- A compensação ambiental com doação de áreas florestais às Unidades de Conservação – UC pelos proprietários rurais, liberando a sociedade urbana, que representa aproximadamente 90% da população, desse ônus; as multas sistemáticas, arrecadadora e “fascista” por vezes, implantada com a política de “comando e controle”, equivocada como política florestal, cobrança feita só aos proprietários rurais, cobrados também pelo alimento, que representam menos de 10% da população, sem contrapartida dos urbanos que esquecem de cobrar as UC dos municípios, dos estados e mesmo da união que seriam os quase 90% da população beneficiária que deveria arcar com esta conta, são, por outro lado, algumas entre as tantas razões que unem os ruralistas agora, como antes fez e faz também o governo, quando são pressionados a protegerem as florestas, sinalizando sempre, como estratégia de fuga, a necessidade de mudança na lei, como fosse esta a solução e substituísse a ação executiva.

 Essa é agora uma oportunidade para se requerer o espaço ao saber da ciência florestal, evitando-se que os equívocos de ambas as partes nos leve ao sacrifício das florestas e que os interesses de hoje deixe o sacrifício às gerações futuras.
Estão propondo a eutanásia às florestas só porque o remédio é custoso.