sábado, 26 de março de 2011

A quem serve a transposição das águas do São Francisco?

Jornal da Ciência  - JC e-mail  25 de Março de 2011
Aziz Ab´Sáber*

É compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar o procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossíve tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever
os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projeto teimosamente enfatizados.

Nesse sentido, bons projetos são todos aqueles que possam atender à expectativas de todas as classes sociais regionais, de modo equilibrado justo, longe de favorecer apenas alguns especuladores contumazes. Na discussões que ora se travam sobre a questão da transposição de águas do São
Francisco para o setor norte do Nordeste Seco, existem alguns argumentos tã fantasiosos e mentirosos que merecem ser corrigidos em primeiro lugar Referimo-nos ao fato de que a transposição das águas resolveria os grande problemas sociais existentes na região semi-árida do Brasil.

Trata-se de um argumento completamente infeliz lançado por alguém que sab de antemão que os brasileiros extra-nordestinos desconhecem a realidade do espaços físicos, sociais, ecológicos e políticos do grande Nordeste do País onde se encontra a região semi-árida mais povoada do mundo.

O Nordeste Seco, delimitado pelo espaço até onde se estendem as caatingas os rios intermitentes, sazonários e exoreicos (que chegam ao mar), abrange um espaço fisiográfico socioambiental da ordem de 750.000 quilômetros quadrados, enquanto a área que pretensamente receberá grandes benefícios
abrange dois projetos lineares que somam apenas alguns milhares de quilômetros nas bacias do rio Jaguaribe (Ceará) e Piranhas/Açu, no Ri Grande do Norte. Portanto, dizer que o projeto de transposição de águas do São Francisco para além Araripe vai resolver problemas do espaço total do
semi-árido brasileiro não passa de uma distorção falaciosa.

Um problema essencial na discussão das questões envolvidas no projeto de transposição de águas do São Francisco para os rios do Ceará e Rio Grande do Norte diz respeito ao equilíbrio que deveria ser mantido entre as águas que seriam obrigatórias para as importantíssimas hidrelétricas já implantadas no médio/baixo vale do rio - Paulo Afonso, Itaparica e Xingó.

Devendo ser registrado que as barragens ali implantadas são fatos pontuais, mas a energia ali produzida, e transmitida para todo o Nordeste, constitui um tipo de planejamento da mais alta relevância para o espaço total da região.

Segue-se na ordem dos tratamentos exigidos pela idéia de transpor águas do São Francisco para além Araripe a questão essencial a ser feita para políticos, técnicos acoplados e demagogos: a quem vai servir a transposição das águas?

Os "vazanteiros" que fazem horticultura no leito dos rios que "cortam" - que perdem fluxo durante o ano- serão os primeiros a ser totalmente prejudicados. Mas os técnicos insensíveis dirão com enfado: "A cultura de vazante já era". Sem ao menos dar qualquer prioridade para a realocação dos
heróis que abastecem as feiras dos sertões. A eles se deve conceder a prioridade maior em relação aos espaços irrigáveis que viessem a ser identificados e implantados. De imediato, porém, serão os fazendeiros pecuaristas da beira alta e colinas sertanejas que terão água disponível para o gado, nos cinco ou seis meses que os rios da região não correm.

Um projeto inteligente e viável sobre transposição de águas, captação e utilização de águas da estação chuvosa e multiplicação de poços ou cisternas tem que envolver obrigatoriamente conhecimento sobre a dinâmica climática regional do Nordeste. No caso de projetos de transposição de águas, há de
ter consciência que o período de maior necessidade será aquele que os rios sertanejos intermitentes perdem correnteza por cinco a sete meses.

Trata-se, porém, do mesmo período que o rio São Francisco torna-se menos volumoso e mais esquálido. Entretanto, é nesta época do ano que haverá maior necessidade de reservas do mesmo para hidrelétricas regionais. A afoiteza com que se está pressionando o governo para se conceder grandes verbas para início das obras de transposição das águas do São Francisco terá conseqüências imediatas para os especuladores de todos os naipes.

O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe - com grande gasto de energia!-, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e
que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política.

No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.

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*Aziz Ab´Sáber é geógrafo, doutor em Geografia Física (USP), foi presidente da SBPC e do Condephaat e diretor do Instituto de Geografia da USP. É ganhador do prêmio Ciência e Meio Ambiente da Unesco.