quarta-feira, 3 de outubro de 2012

É possível uma produtiva convivência entre agronegócio e meio ambiente


Ponto de Vista
Entrevista com Antonio Donato Nobre


O Brasil está vivendo um momento decisivo na Política Florestal e Ambiental e de mudança de paradigmas nas ciências, o qual tem se refletido no atual sistema agrícola. Um movimento – que se iniciou na década de 1970, com a emergência do ambientalismo, e ganhou força com a crise do petróleo – fez dos recursos naturais, da energia e do ambiente em geral um tema de importância econômica, social e política.

A questão ambiental passou a compor a agenda de políticas públicas e progride hoje para mudanças no novo Código Florestal, e para o florescimento de uma nova ciência, a Economia Ecológica. Esses avanços buscam harmonizar o modelo de desenvolvimento econômico vigente, considerado incompatível com o desenvolvimento sustentável, o qual, por sua vez, considera os aspectos sociais e ambientais no processo produtivo, gerando conflitos, pela percepção de restrição ao crescimento econômico. Essa crítica ambientalista progrediu no campo da ciência econômica por ser o funcionamento do sistema econômico o objeto central da crítica. A editoria da RPA, movida pelo ardoroso e atualíssimo debate sobre questões climáticas, tema cercado por probabilidades e incertezas, e considerando também que essa é uma área vital para a produção agrícola, foi procurar respostas com o Dr. Antonio Donato Nobre.

O Dr. Nobre vem atuando em vários tópicos na agenda de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Estudioso do polêmico tema do Código Florestal, responde pela relatoria de um livro sobre o assunto, que investigou as questões em profundidade, por meio da revisão de centenas de publicações científicas, análise que foi patrocinada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências. Seus argumentos baseiam-se numa nova vertente, que aplica preferencialmente uma lógica baseada nas leis da natureza, na física, na química e na biologia. A RPA optou por iniciar a conversa com o Dr. Antonio Nobre tratando dos rios voadores.


RPA – O que são rios voadores?

São massivos fluxos atmosféricos de vapor, definidos sobre uma região ou vindos do oceano para o continente.

RPA – Como a floresta produz água?

A floresta não produz água; ela intermedia poderosamente a transferência da água, da atmosfera para o solo (controlando a nucleação de nuvens e suas chuvas) e do solo para a atmosfera (sugando a água pelas raízes das árvores e emitindo-a eficientemente para a atmosfera, por meio das folhas no dossel). Essa intensa mediação resulta em absorção de uma grande quantidade de energia solar (utilizada na evaporação), que é transformada em energia dos ventos (durante o processo de condensação nas nuvens), o que ultimamente bombeia ventos úmidos do oceano para o continente.

RPA – O que distingue o bombeamento d’água por meio da ação da floresta equatorial do bombeamento d’água em outras latitudes?

A disponibilidade de energia solar é muito maior na região equatorial (onde a incidência dos raios solares é vertical) do que em altas latitudes. Ademais, a energia solar no equador induz uma maior evaporação. As florestas aumentam ainda mais a evaporação, o que gera um ciclo virtuoso – ou seja, mais evaporação gera mais movimento ascendente e mais condensação, o que, por sua vez, gera mais chuvas, favorecendo a própria floresta. E, o mais importante, suga ventos úmidos do oceano para o continente. Esse efeito ocorre em todo lugar onde existam florestas, porém é mais intenso nas zonas equatoriais.

RPA – As árvores na Amazônia – aproximadamente 600 bilhões, com diâmetro de tronco maior que 10 cm – usam a luz do sol para transferir, por meio da transpiração, 20 bilhões de toneladas de água diária para a atmosfera. São essas condições especiais que explicam o elevado nível pluviométrico na região?

Sim, em termos de disponibilidade de matéria-prima (água) para a formação de nuvens e chuva. Mas produz outro efeito especial e único, que é a nucleação das nuvens pelos compostos orgânicos voláteis (VOCs) emitidos pelas árvores da biodiversidade amazônica. Esses VOCs são os “cheiros da floresta”, os isoprenos, os terpenos e uma grande variedade de outros compostos orgânicos transpirados que, na atmosfera, são indispensáveis para iniciar a condensação do vapor d’água em gotas. Sem esses compostos, pode haver vapor d’água, mas não haverá chuva. E esses VOCs não podem ser substituídos funcionalmente por plantações em monocultura.

RPA – Esse enorme volume de água é superior ao do deságue do rio Amazonas no Atlântico?

O rio Amazonas, em seu canal esquerdo, que é o principal, deságua em média 200 mil metros cúbicos por segundo no Atlântico. Em um dia (86.400 segundos), 17 bilhões de toneladas de água passam por ali. Portanto, a transferência de água da superfície para a atmosfera, mediada pelas árvores da floresta, é, sim, maior do que a água transferida do continente para o oceano, pelo maior rio da Terra.

RPA – Considerando esses novos conhecimentos e muitos que ainda virão sobre os benefícios da floresta, na sua percepção, o que deveria ser feito, do ponto de vista de política agrícola, para promover uma maior sinergia entre a agricultura e o meio ambiente?

A primeira ação é de esclarecimento e convencimento. Programas como o “Cultivando Água Boa” – promovido e coordenado pela Itaipu Binacional, em cooperação com produtores rurais na bacia do rio Paraná – ou o “Y Ikatu Xingu, Salve a Água Boa” – promovido e coordenado pelo Instituto Socioambiental, em cooperação com vários agricultores das cabeceiras do rio Xingu – são dois exemplos de sucesso, entre muitos no Brasil. São programas que envolvem um pouco de capital, um compromisso claro com a harmonização e a busca perseverante da sinergia. E rendem excelentes frutos.

No primeiro caso – Cultivando Água Boa –, uma grande empresa de energia, usando seu poder econômico e sua influência, estabeleceu umarede colaborativa composta por proprietários rurais, que pôs em prática inteligentes e inovadores programas ambientais. Um exemplo é o sistema de reciclagem de dejetos de suínos em granjas no oeste do Paraná. O programa desenvolveu biodigestores que processam o material, gerando adubo curado – que é vendido como fertilizante de campos agrícolas – e gás metano. O gás metano é recolhido das granjas por um gasoduto e levado a uma central termoelétrica movida a biogás. A eletricidade gerada supre todas as necessidades dos produtores, e o excedente é vendido para a Itaipu, que o injeta na rede elétrica. Como o CO2 (resultante da queima do biogás) produz um vigésimo do efeito estufa do metano, esse sistema de produção de energia ainda se qualifica para receber créditos de carbono.

Quanto ao programa Y Ikatu Xingu, em vigência nas desmatadas cabeceiras do rio Xingu, ao qual aderiram grandes e médios produtores de grãos, famílias rurais e povos da floresta (indígenas), começa na coleta e no preparo de sementes de árvores nativas da Amazônia. Em seguida, as sementes são vendidas aos proprietários rurais, que as utilizam para recompor áreas de preservação permanente (APP) e a reserva legal, em suas propriedades. Recorrendo à tecnologia desenvolvida pelo projeto (sistema de muvuca), os agricultores utilizam adubadeiras mecanizadas para plantar as sementes das árvores nativas, reduzindo, assim, custos e aumentando geometricamente o rendimento. Como consequência, auxiliam a natureza a recompor as matas ciliares e outras áreas, recebendo como benefício não somente a certificação ambiental de suas propriedades, como também os benefícios ecológicos daquelas matas, para a produção agrícola e a de serviços ambientais. Muitos desses projetos de recuperação ambiental estão sendo inteiramente financiados pelos créditos de carbono, do qual é um exemplo a empresa Natura, que pagou o replantio em áreas do projeto.

A harmonização e a sinergia entre agricultura e ambiente não é somente boa localmente. Os benefícios são amplos, repercutindo até mesmo como imagem de mercado, o que gera segurança econômica e sustentabilidade. Se uma grande empresa de energia e uma ONG socioambiental podem fazer política agrícola com solidez econômica e com esse viés ambiental, por que, então, não copiar esses exemplos e expandi-los para todos os biomas? Já está demonstrado ser possível e altamente lucrativo. Falta apenas boa vontade política.

RPA – A área de conhecimento sobre paisagens inteligentes deve trazer novas soluções. O senhor tem feito uma campanha para o desenvolvimento de paisagens inteligentes no Brasil. Fale-nos um pouco da sua importância econômica.

O desenvolvimento de paisagens inteligentes tem a ver, inicialmente, com a geografia física. É o conhecimento avançado sobre terrenos, aplicado na compreensão e no uso da paisagem. A campanha que lancei das paisagens inteligentes conta com uma nova abordagem tecnológica para harmonizar produção com conservação, por meio da otimização de usos. A inteligência espacial nos usos da paisagem garante aumento da rentabilidade (e da sustentabilidade) nos sistemas de produção rural, criando uma virtuosa nova economia, baseada também na produção de serviços ambientais.

RPA – Quais são as tecnologias mais avançadas e revolucionárias utilizadas na localização e na caracterização de terrenos?

Empregamos os dados de imageamento da paisagem em 3D, gerados por equipamentos de radar ou laser, que podem ser orbitais ou aerotransportados. As imagens digitais dos terrenos permitem a representação da paisagem no computador, como maquetes virtuais. Sobre elas aplicam-se, então, sofisticados algoritmos matemáticos, que permitem diagnosticar as características topográficas, hidrológicas, e muitas outras. Essas características dos terrenos, combinadas com as características dos ecossistemas, são indicadores dos tipos de solo, da posição do lençol freático, do potencial de erosividade, entre muitos outros critérios de diagnóstico.

RPA – Como os produtores serão beneficiados no futuro com a utilização dessas tecnologias?

A agricultura de precisão, última palavra na aplicação de geotecnologias na otimização do uso de insumos no campo, tem demonstrado como a racionalização espacial dos cultivos, que respeita os potenciais e as fragilidades dos solos, pode ao mesmo tempo reduzir custos e impactos ambientais, aumentando, consequentemente, o rendimento e a lucratividade das culturas.

As paisagens inteligentes seguem lógica similar, mas, por empregar geotecnologias revolucionárias, permitem mapeamentos remotos de terrenos, em larga escala e com fina resolução espacial. Para quem já emprega a agricultura de precisão, contribuirá na redução de custos de implantação para novas áreas. Para a imensa maioria dos agricultores, especialmente para os pequenos e os médios que não têm recursos para investir em detalhados levantamentos de terrenos, será uma fonte abundante e disponível de informações, que podem melhorar muito a alocação e a otimização de usos dentro da
propriedade.

RPA – Essas tecnologias induzirão novas práticas e manejos agrícolas?

Com certeza. Um exemplo está na alocação de APP e reserva legal. Hoje, as APPs obedecem a uma geometria burocrática, por causa da prescrição de um Código Florestal que foi elaborado em 1965, quando ainda não havia satélites nem computadores. Com as novas tecnologias desenvolvidas em nosso grupo no Inpe, podemos, por exemplo, localizar os terrenos brejosos, com solos hidromórficos, que são áreas vitais para o condicionamento e para a proteção dos cursos d’água e, ao mesmo tempo, são terrenos majoritariamente impróprios para a agricultura.

Nas audiências sobre o Código Florestal, fizemos uma proposição ao Congresso para que as APPs fossem definidas de acordo com os terrenos. Explicamos que, assim como os sapatos que calçamos se amoldam às curvas dos nossos pés, a paisagem também tem curvas, os terrenos são altamente variáveis, e a lei de hoje, de 2011, com todas as tecnologias que possuímos, deveria abrir esse caminho. Deveria contemplar uma alocação orgânica das áreas de proteção, inclusive para as reservas legais, ao invés de definir um retângulo com a porcentagem prescrita de área da propriedade. Nas paisagens inteligentes, essas seriam alocadas de forma orgânica e irregular, acompanhando os terrenos mais frágeis e com menor potencial de produção agrícola. Essa flexibilização de forma, combinada com os potenciais, com as fragilidades e com os riscos dos terrenos, ajudaria na introdução de uma nova era de sinergia espacial entre agricultura e conservação.

E os critérios básicos na alocação de usos serão, entre outros, as propriedades claras e indiscutíveis dos terrenos – quem não sabe o que é um brejo ou um grotão? Como essas tecnologias também indicam a profundidade do lençol freático, portanto quantificam o acesso ao insumo mais precioso da agricultura, será possível sistematizar a alocação de culturas, perenes ou anuais, para aproveitar a água do solo de acordo com a profundidade de enraizamento, e adequando-a em relação às constâncias e às inconstâncias do clima. Com o tempo, tais tecnologias tenderão a evoluir para permitir a determinação remota dos tipos de solo em cada área, o que certamente resultará em melhor aproveitamento e em aumento de rendimento.

RPA – Que aprendizado os produtores rurais brasileiros precisam adquirir prontamente para manter a competitividade e a harmonia entre produção e meio ambiente?

Sem perder de vista os grandes avanços conquistados pela ciência e pela tecnologia agrícola, os quais, aplicados com grande competência pelos agricultores e por empreendimentos agrícolas, têm levado o Brasil a ocupar o podium mundial na competição pelo mercado de um número crescente de produtos, é preciso voltar a integrar-se à natureza. Obviamente que a agricultura não existiria sem a natureza provendo uma imensa variedade de “serviços”, ambientais e ecossistêmicos, mas me parece que a mentalidade predominante no setor agrícola não registra tal fato como deveria fazê-lo. Talvez essa mentalidade seja resultado da constância e da invisibilidade dos serviços da natureza, aliadas com o efeito das muitas revoluções verdes desencadeadas pelas tecnologias empregadas no campo, as quais criaram a ilusão de que o ser humano moderno tudo pode, inclusive tornar-se completamente independente da natureza. Sem dúvida, pode-se produzir tomate numa estação orbital, no ambiente inóspito e agressivo que é o espaço, mas 1 kg de tomates orbitais custaria uma pequena fortuna.

Aliás, a inviabilidade de prescindir da natureza foi demonstrada no experimento Biosfera II, feito no Arizona, EUA, no qual se tentou recriar um microcosmo Terra, funcional e autônomo, em abóbadas lacradas, de vidro. O experimento fracassou passados apenas poucos dias do isolamento da biosfera terrestre.

Este é, a meu ver, o maior desafio de (re)aprendizado pelos agricultores hoje: como aprender a valorizar o imenso capital tecnológico, eficiente e gratuito, que opera silenciosamente na natureza, em favor de todos, inclusive e principalmente em prol da agricultura, sem precisar voltar ao arado de aiveca e à tração animal?

Essa mudança não somente é possível, como também é factível; os agricultores algum dia reconhecerão que a natureza é fabulosamente tecnológica. Então, o que muitos agora chamam depreciativamente de “mato” adquirirá renovado valor, e isso será graças à compreensão sobre a benfazeja floresta, capital inestimável, de cujo serviço fiel depende umbilicalmente a agricultura. Essa percepção renovada trará muitíssimos benefícios ambientais e econômicos, e principalmente nos trará a paz, já que a opinião pública constatará, finalmente, que os agricultores se tornaram os principais defensores da natureza.

O Dr. Antonio Donato Nobre graduou-se em Agronomia pela Esalq/USP, em 1982; tornouse, em 1989, mestre em Biologia Tropical (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e, em 1994, titulou-se Ph. D. em Earth System Sciences (Biogeochemistry) pela University of New Hampshire. Autor de mais de 40 artigos na literatura científica internacional, é respeitado por sua atuação nas áreas de ciclo do carbono, ecofisiologia, hidrologia, modelagem de terrenos, clima e a regulação biótica do sistema planetário. Atualmente, é pesquisador sênior do Inpa e pesquisador visitante no Centro de Ciência do Sistema Terrestre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Revista de Política Agrícola, EMBRAPA Ano XX – No 4 – Out./Nov./Dez. 2011