segunda-feira, 2 de junho de 2014

Negacionismo: o empurrão cínico para o abismo climático

Antonio Donato Nobre

No caso das mudanças climáticas a situação é  muito agravada pela ação muitas vezes difamante e desagregadora dos céticos do clima, também conhecidos por negadores das mudanças climáticas e da responsabilidade humana nestas. Usando ainda a metáfora do alcoólatra: os negadores -quase sempre sem fundamento factual de evidencias ou de conhecimento demonstrável- usam elaboradas táticas de marketing e maliciosas estratégias difamatórias na militância para desacreditar o médico e convencer o alcoólatra a continuar no vício, uma atividade frequentemente bem paga por corporações que lucram vendendo álcool. Mas quem são os negadores das mudanças climáticas e como agem?

Alexandre Costa[1] da Universidade Estadual do Ceará, depois de elencar como idealmente o processo da ciência garante por transparecia e testabilidade a veracidade e solidez dos conhecimentos que gera, resumiu sua visão sobre a ação dos negadores das mudanças climáticas:

... os negadores não seguem as regras do debate e do método científicos. Pelo contrário, atacam-nos, sem cerimônia. É possível fazer qualquer afirmação tresloucada em um blog, em uma palestra, em um “debate” (desses que mais parecem debate eleitoral) ou em uma aparição na mídia. A liberdade para mentir, fantasiar, tergiversar nesses casos é quase infinita e para quem tem compromisso com a verdade científica, é difícil dar conta até de uma pequena parcela dessas mentiras, falsificações e tergiversações. Explicar porque determinada afirmação é falsa dá muito mais trabalho do que fazê-la. ... É desse terreno que os negadores gostam. É por meio dele, e não de um debate verdadeiramente científico e honesto, que eles tentam envenenar a opinião pública e os tomadores de decisão...

E  explica a pouca reação da comunidade cientifica:

Poucos cientistas, portanto, terminam por entrar nessa arena de gládio, para encararem o vale-tudo dos negadores. Individualmente, nada se ganha ao fazê-lo, pelo contrário. Perde-se tempo e energia que poderia estar sendo dedicada à pesquisa e à produção científica ... Há também os cientistas que acham que não é seu papel popularizar a ciência ou sequer combater a pseudo-ciência e a anti-ciência junto ao público. Por fim, há um fator que não se deve desprezar. Pela virulência dos ataques e pelo grau acentuado de desonestidade dos negadores, muitos dos meus pares simplesmente preferem não lutar no terreno deles. É preciso, realmente, muito estômago!

Mas no campo negacionista não existem somente inescrupulosos bufões. Os maiores estragos na introdução de dúvidas e confusão sobre as mudanças climáticas tem historicamente sido feito por influentes cientistas dissidentes.  Quem são eles, quais suas historias e como grande parte deles tornaram-se mercenários a favor da causa do imobilismo tem sido analisado por livros[2] e estudos sociológicos.[3] 

Após o escândalo fabricado do climategate, Myanna Lahsen,[4] investigando o impacto causado na percepção pública da integridade da ciência do clima, explica e caracteriza uma das formulas da qual se valem os negadores para obter sucesso:

“O que pode impressionar... é a forma como o público é vulnerável ​​e manipulável ​​pelas campanhas do reacionarismo [negacionista], que pinta a ciência do clima como corrupta ....muitos trabalhos explicam a absorção pelo público das mensagens do reacionarismo [negacionista], em termos da influencia das estratégias escusas das elites financeiras e politicas, auxiliadas por um pequeno conjunto de cientistas contrários que emprestaram a necessária (aparência de) credibilidade científica.”

Essa autora vai além e desenvolve uma critica rara ao campo do consenso científico. Segundo ela o conhecido esquema de difamação e semeadura de duvidas dos negadores não teria tanto sucesso não fosse uma imagem idealizada de superioridade da ciência do clima que cientistas do IPCC e seus seguidores cultivam e projetam. Mais grave, ela cita omissão por estes das críticas desafiando o IPCC e aqueles que suportam o consenso, feitas por cientistas sérios e não politizados, através de canais usuais e respeitados da ciência.

Sem querer descontar essa analise critica, é preciso considerar que cientistas massivamente agredidos por uma bem financiada maquina difamatoria, e na defensiva, se vejam na contingência de isolar as correntes negadoras, situação onde eventualmente pode-se perder algum argumento valido. Em ultima analise a ferocidade e desonestidade das forças corruptoras da negação, a serviço do que parece ser uma elite feudal, tem parte importante da responsabilidade nesta perturbação da ciência.  

Mas existem saídas para essa situação. Desde o Climategate em 2009 a respeitada cientista do clima Judith Curry da Georgia Tech tem adotado uma distensão com os céticos do clima. Em uma carta aberta na blogosfera ela pondera:

“...eu diria que há três estratégias para [os cientistas do clima] lidarem com os céticos:
     1. Isolar-se na torre de marfim.
     2 Montar um círculo defensivo ao redor dos vagões [da ciência do clima] apontando as armas para fora: ataques
Ad hominem/apelo ao motivo; apelar à autoridade; isolar o inimigo por falta de acesso a dados; [manipular] processo de revisão por pares.
     3 Escolher uma "moral elevada:" envolva os céticos em nossos próprios termos (conferências, blogosfera); tornar dados/métodos disponíveis/transparentes; clarificar as incertezas; declarar abertamente nossos valores.”

Segundo ela a maioria dos cientistas se abrigam na torre de marfim. Os emails do Climategate revelam influentes cientistas do consenso adotando a estratégia da guerra. E ela vem adotando a estratégia de envolvimento dos céticos.  A face mais visível da sua estratégia pró-ativa é seu blog Climate Etc., que ela define como “um fórum para pesquisadores do clima, acadêmicos e especialistas de outras áreas, cientistas cidadãos e do público interessado em se envolver em uma discussão sobre temas relacionados com a ciência do clima e da interface ciência-política." Mas note que o ambiente de seriedade e respeito que ela oferece [as discussões são mediadas] abre espaço para dialogo apenas com a pequena fração séria de investigadores céticos. Os negadores mercenários não dão as caras.

Em um outro nível, Alexandre Costa sumariza quais são as prospectos em relação aos conflitos da ciência do clima com os negadores:

“Mas felizmente, os negadores têm um adversário à altura, que não precisa, como nós, caminhar sobre ovos! Um adversário duro, bruto, que vai direto ao assunto, que não se intimida, que não faz juízo de valor, que não tem ideologia. É esse adversário, e não o IPCC e o restante da comunidade da Ciência do Clima, quem tem feito o contraponto mais cristalino aos negadores. Chama-se Natureza! Esta não tem de se preocupar em testar múltiplas vezes suas próprias hipóteses, nem em revisar, em um processo lento, uma análise sobre suas próprias leis. Ela simplesmente é. Simplesmente se comporta de acordo com suas próprias regras. Simplesmente faz! E bate duro na negação!

De fato, independente das deficiências e incertezas preditivas, e mesmo das limitações humanas daqueles que fazem a ciência do clima, evidencias observacionais são o que são, inegáveis. Quando secas ou tormentas de granizo em série e outros alucinantes desastres no menu  da nova realidade climática chacoalham a indolência usual de milhões de pessoas, como negar? No sumário para tomadores de decisão do quinto e mais recente Relatório de Avaliação do IPCC (AR5) o Grupo de trabalho 1 (A Base das Ciências Físicas), baseado na revisão exaustiva e meticulosa de milhares de artigos científicos e vastas bases de dados resume:

“O aquecimento do sistema climático é inequívoco, e desde a década de 1950 muitas das mudanças observadas não tem precedentes ao longo de décadas a milênios. A atmosfera e o oceano tem aquecido, a quantidade de neve e gelo tem diminuído, o nível do mar subiu, e as concentrações de gases de efeito estufa aumentaram.”

Qualquer observador sereno e isento deveria estar finalmente convencido das mudanças climáticas. Porém, a despeito da avassaladora enxurrada de evidencias, o negacionismo segura as rédeas do imobilismo e aparentemente está obtendo exito na defesa de seus (sujos) interesses. Embalada por eficazes embaralhadores-cognitivos ministrados pelo negacionismo, a civilização global segue trotando sobre as evidencias, teimosamente ignorando que, por sua culpa, o conforto ambiental da nave planetária esteja falindo. Diferente do alcoólatra, que pode receber um transplante de fígado para evadir a reciprocidade fatal das suas escolhas irresponsáveis, no gravíssimo caso planetário, quando chegar o colapso do sistema de regulação climática, não haverá transplante possível, teremos colocado um ponto final nas possibilidades da civilização humana continuar sua despreocupada existência no conforto desta Terra. A biosfera, como prevê a teoria de Gaia, saberá continuar sua existência e até eventualmente recobrará seu equilíbrio como o fez diversas vezes na historia geológica do planeta. Mas durante milhões de anos, até o restabelecimento do conforto climático, a violência geofísica imperará.